quarta-feira, 21 de maio de 2008

Verdade paradoxal do comediante em Diderot

Um dos aspectos mais relevantes das obras de Diderot (1713-1784) é a questão que ele propõe sobre as atividades do teatro francês e do ator de teatro. Para o primeiro, Diderot irá investir criticamente contra a estética que se apresenta, isto é, o teatro francês é inócuo, não suscita emoções, é convencional e incapaz de criar uma ilusão naquele que ao assiste e, por isso, peca pela artificialidade que se apresenta ao público. Ainda, regido por regras arbitrárias, o teatro francês é racional, discursivo e se expressa apenas para poucos espectadores, "escrito em um estilo alambicado, obscuro, tortuoso, empolado, está cheia de idéias comuns" (Diderot, René. Paradoxo sobre o comediante in A Filosofia de Diderot, Editora Cultrix, p. 165)

Embora se encontrem opiniões sobre os textos de Diderot que convergem para sentidos opostos, umas dizendo que a sua obra é entrecortada por inclinações opostas, outras dizendo que as inclinações se alteram no decorrer dos escritos, pois os objetos mudam e por isso as idéias, que por si só são pontos de reflexão e plenas de atividades, mudam de acordo com a complexidade do objeto, há uma insistência e constância nas suas concepções teóricas. Para Diderot, em toda a sua trajetória, a função do teatro continua a mesma, isto é, a arte cênica é a imitação da própria vida; a realidade com qual a platéia deve se fundir, um a outro, a ponto de tomar para si a ficção pela realidade. O teatro ultrapassa a barreira do preconceito e do mero entretenimento, Diderot acredita que este deve transtornar o espectador ao ponto de abalar e causar-lhe um efeito duradouro, uma impressão que não se dilua após o espetáculo. O filósofo e dramaturgo participa um teatro como meio de comunicação, inspirado e desempenhado a favor de uma moral social, que possa agir sobre o público a partir de uma estética bem elaborada que suscite emoções de certo modo permanente no espectador, fazendo vir à tona a finalidade comum das artes, que é: "fazer com que o homem ame a virtude e odeie o vício" (Matos, Franklin de, O Filósofo e o Comediante, Ed UFMG, p.29).

Desse modo, nesta trajetória, surge uma dramaturgia na obra de Diderot que promove a observação da natureza, não da natureza por ela mesma, mas uma observação refletida sobre modelos ideais, que ao reproduzi-los autor e ator se apliquem com ênfase na movimentação estilizada ao que é natural e ao abandono da proporção e da simetria. Pois, se por um lado o discurso elaborado é agradável aos ouvidos, por outro ordena as coisas e inibe as paixões. Assim, "compete à natureza dar as qualidades da pessoa, a figura, a voz, o julgamento, a sutileza. Compete ao estudo dos grandes modelos, ao conhecimento do coração humano, à prática do mundo, ao trabalho assíduo, à experiência e ao hábito do teatro, aperfeiçoar o dom da natureza. " (Diderot, opus cit, p. 165). Embora, como comenta o professor Franklin de Matos, este movimento da estética de Diderot nasça de um conceito de mimesis que se baseia na sensibilidade, espontaneidade, entusiasmo e se inclina, devido à experiência, quer como dramaturgo, quer como critico de arte; para a frieza, tranqüilidade e penetração, Diderot não abandona a sua crítica principal ao teatro clássico francês e a proposta de uma reforma da cena teatral.

Para o segundo, retomando: o ator, Diderot afirma: "o comediante que representar com deliberação, com estudo da natureza, com imitação constante segundo algum modelo ideal, com imaginação, com memória, será um e o mesmo em todas as representações, sempre igualmente perfeito, tudo foi medido, combinado, apreendido, ordenado em sua cabeça (...)Ele não será desigual: é um espelho sempre disposto a mostrar objeto e a mostrá-los com a mesma precisão, a mesma força e a mesma verdade" (Diderot, opus cit, p. 167-168). Em suma, o autor pode ser em si mesmo verdadeiro sendo outro. À medida que o ator se apresenta frio, tranqüilo e compenetrado, mais ele terá o controle e domínios das suas emoções e assim, formando o paradoxo, ele poderá representar (imitar) de modo verdadeiro as emoções da personagem diante do público.

O teatro é visto, neste momento das reflexões de Diderot, como um teatro das inflexões, que privilegia os componentes pré-verbais, isto é, a desarticulação de idéias, os monossílabos, os ruídos, os gritos, o que coloca a palavra em segundo plano com a ascensão das emoções. Mas isto não tira das mãos do poeta o valor da sua composição? Não, apesar do paradoxo que se forma mais uma vez, desde que o teatro seja visto como a voz do discurso do poeta, este movimento em verdade aproxima o ator da energia das palavras e das cenas que são postas aos seus cuidados, o verdadeiro palco, afirma Diderot, "é a conformidade das ações, dos discursos, da figura, da voz, do movimento, do gesto, com um modelo ideal imaginado pelo poeta, e muitas vezes exagerado pelo comediante. Eis o maravilhoso" (Diderot, opus cit, p. 175). Ainda que nenhuma língua seja capaz de dar conta da delicadeza e diversidade de uma emoção, as palavras do poeta, na perspectiva de Diderot, emergem da motricidade corporal com que o ator as representa no palco, a emoção brota da realidade observada e escrita pelo poeta, que pode agora indicar a energia passional que o seu texto exprime. O paradoxo de Diderot envolve duas "verdades" que aparentemente se afastam, mas que, de fato, se harmonizam a favor da perfeição. A perfeição das obras se medem pelo seu poder de iludir (Matos, Franklin de, opus cit, p.38), isto é, a cena de teatro perfeita é aquela que o público toma como verdadeira, sendo em si uma ilusão.

Porfírio Amarilla

Filósofo pela USP/FFLCH

Um comentário:

Élida Dutra disse...

Muito bom! Me pego pensando se o paradoxo não seria ao invés de ser a frieza do ator ao "imitar" as emoções com tamanha proeza que iluda o publico, mas sim (...) é um espelho sempre disposto a mostrar objeto e a mostrá-los com a mesma precisão, a mesma força e a mesma verdade" (Diderot, opus cit, p. 167-168) enquanto como objetivo tem a imitação da natureza em seu ideal e com sua sensibilidade e imaginação. Me parece que a representação constante idêntica, firme, precisa, e com "a mesma força e a mesma verdade" contraria a natureza em si.

Para formular melhor o que penso, seria necessário associar tal representação da natureza e de seu ideal as artes plásticas na qual já houvera discussões sobre se de fato a arte ideal é a representação da natureza, visto que e suas limitações, e suas divergências de uma representação de um mesmo cenário de artista para artista já foram debatidas e evidenciadas. A questão então seria que essa representação exata em todas as peças, ao qual Diderot considera ser magnifica e a ideal para um bom artista (e maduro), não seria uma arte morta na sua segunda peça, enquanto que a primeira ainda é unica? Não seria a natureza cada vez que vista, diferente da ultima vez que admirada e assistida?