quinta-feira, 2 de abril de 2009

LILIA CABRAL

Quando fazia escola de teatro, a cada vez que anunciavam que alguém importante iria falar conosco, eu e meus colegas nos sentíamos como se estivéssemos indo para Harvard. Assisti a palestras com Gianfrancesco Guarnieri, Lelia Abramo, Cleyde Yáconis, Juca de Oliveira, Myriam Muniz, Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi. Quando me fizeram o convite de vir aqui conversar com vocês, quem se sentiu prestigiada fui eu.

Quando gravei um “Você Decide” com o Guarnieri, lembrei a ele que uma vez ele deu uma palestra na EAD e disse que sempre o admirei muito na profissão. Ele disse que era um prazer trabalhar comigo. Ele disse isso por causa do respeito pela profissão, pelo prazer de trabalhar como ator, não importa ao lado de quem.

Desde pequena vivi num mundo solitário. Sou filha única e meus pais, imigrantes, sempre trabalharam muito. Quando fui estudar numa escola experimental observaram que eu tinha tendência a ser líder. Sentia que tinha domínio sobre a minha presença. Depois, quando fui para uma escola tradicional não me deixaram fazer mais nada. Só que, nessa época, já tinha de 16 para 17 anos e comecei a me aproximar da arte.

Jamais poderia dizer a meu pai – italiano, conservador – que queria ser atriz. Aos 19 anos disse que iria trabalhar. Mas fui participar da seleção da EAD. Caso fosse aprovada, teria que contar ao meu pai. Não sabia para o que torcer. Acabei passando. Lembro de Lolô (Lourival Prudêncio) ligando para a minha casa, às quatro horas da manhã, dizendo “você passou”. Fiquei dois anos na EAD sem meu pai desconfiar. A vida foi me mostrando um caminho.

Um dia tive que contar ao meu pai que estava fazendo teatro. Mas aí tinha 21 anos e não corria mais o risco de apanhar. Já trabalhava, ganhava meu dinheiro, podia me sustentar.

A escola foi uma das coisas mais importantes da minha vida. Tive professores maravilhosos, diretores que me incentivaram. Sempre fui muito transparente e sofri por causa disso. Não deixava de dizer o que sentia. Nunca escondi que queria fazer cinema, teatro e televisão. Fazia publicidade e ganhava o meu dinheiro.

Quando a escola acaba você sente uma truncada. Não é que o sonho tenha acabado, mas entra a realidade, que não é fácil. Surgem situações que você não sabe resolver. O começo da profissão é muito difícil porque, às vezes, há muita injustiça. Tudo precisa ser enfrentado e o resultado pode demorar a aparecer. Mas se você realmente enfrentar, um dia acaba conseguindo.

Dos 20 alunos da minha turma sobraram quatro: eu, Lolô, Olayr Coan e a Bel, que hoje dá aula. Na turma acima da minha, só o (Edson) Celulari. As outras pessoas deixaram de fazer teatro porque é muito difícil.

O teatro recompensa. Você pode fazer um fracasso, mas, com o passar dos anos, percebe o quanto aprendeu. Para mim o mais difícil foi sobreviver na TV e no teatro. Causei ciúmes. Quando você começa a fazer um certo sucesso, as pessoas não deixam propriamente de ser suas amigas mas de conviver e de te escutar. E dentro da TV fazemos um amigo por novela.

Odavilas Petti foi meu professor na EAD. Quando acabou a escola, fez um espetáculo, chamado “Seda Pura e Alfinetadas”, texto que Leilah Assumpção escreveu para o Clodovil. Eu fazia uma manequim. Ficava parada e no começo do espetáculo, as pessoas não sabiam se era um boneco ou uma pessoa. No segundo ato, ficava lá parada ouvindo o Clodovil falar sobre o caso do pai com o tio. Não era o que eu queria para a minha vida. Mas foi a primeira oportunidade de trabalho que surgiu. Não acrescentou na minha carreira como atriz, mas fui vista por muita gente. Foi por causa desse trabalho que Paulo Betti me convidou para fazer “Feliz ano velho” e que um diretor da TV Bandeirantes me chamou para a novela “Os Imigrantes”, de Benedito Ruy Barbosa.

Ganhamos muito dinheiro com “Feliz Ano Velho”. Fazíamos apresentações de quarta a domingo, sendo que duas sessões a cada dia no final de semana. Todas, lotadas. Dividíamos o dinheiro entre nós, sob a forma de cooperativa. Guardava o dinheiro porque queria me mudar para o Rio de Janeiro. No último dia de apresentação em São Paulo, convidei meu pai para assistir. Nessa noite fui aplaudida seis vezes em cena aberta. Quando terminou, meu pai foi ao camarim e eu perguntei se ele tinha gostado. Ele respondeu: “Se você é tão aplaudida assim é porque tem o seu valor”. Antes ele achava que quem fazia teatro era prostituta por causa do teatro de revista, do teatro do rebolado.

Antunes Filho dizia para mim e para Hugo Della Santa que nós iríamos trabalhar com ele. Acabei não indo porque sabia que a carteira voaria na cabeça dele. Não conseguiria me adaptar ao jeito dele por causa do meu temperamento. É um encenador deslumbrante, mas se fosse trabalhar com ele não teria a chance que obtive num espetáculo tão aquém do que gostaria de fazer, mas que acabou me abrindo portas.

Em “O Baile de Máscaras”, eu fazia um papel muito pequeno. Pensava: por que o Mauro (Rasi) me chamou? Mas comi pelas beiradas e o papel acabou se tornando significativo. E foi graças a esse espetáculo que conheci a Cleyde (Yáconis) que me estimulou muito a fazer um monólogo (“Solteira, casada, viúva, divorciada”) que me deixou muito feliz.

A partir da minha experiência em “Divã”, percebi que não adianta querer brilhar sozinha. Já fiz espetáculos tentando derrubar o colega porque ele estava me sacaneando e vice-versa. Posso dizer com categoria que não vale a pena.

Marcelo (Valle) faz yoga e Alexandra (Richter), exercício de voz. Yoga me dá sono. Também não gosto de exercício físico. Não sou disciplinada, nesse sentido. Sei colocar a voz e gosto de pular com música alta.

Entro concentrada em cena, mas é um estado que busco desde a hora em que saio de casa. No Teatro Vanucci, onde apresentamos “Divã”, muitos espetáculos são apresentados. É uma rotatividade bem grande. Por causa disso, quando chego ao teatro tenho que entrar pelo banheiro feminino, que geralmente está sujo, para chegar a um puxadinho, onde ficamos eu, Marcelo, Alexandra e dois diretores de cena. Falamos baixo para não atrapalhar o espetáculo que terminará 15 minutos antes do início do nosso. Não tenho o teatro, mas uma vaga durante uma hora e meia.

Há momentos em que é importante em que o trabalho termine. O seu corpo pede. Você se sente instigado a fazer coisas diferentes. Já quando se despede de outras personagens é a morte. Foi assim com a Marta, de “Páginas da Vida”. Fiquei doente, com labirintite. Não me dei conta da intensidade com que trabalhei.

Eu e (Marcos) Caruso nos entrosamos muito. O fato de sermos paulistas ajudou. Temos o mesmo tom, quase as mesmas histórias. É um ator que realmente ouve em cena. Se ele tinha que se sentir diminuído, que transmitir fraqueza, fazia. Qual é o ator que gosta de aparecer assim?

Se eu tivesse 10 anos a menos não teria conseguido fazer a Marta. Quando li o primeiro capítulo já estava lá a mulher amargurada, infeliz, preconceituosa. Quando fui compor a personagem, pensei: “não vou fazer o que os vilões fazem”, no sentido de pontuar uma postura de “eu sou o vilão”. Interpretei-a como uma pessoa normal. Ela falava “estou pouco me lixando para a minha neta” como “me dá um copo d’água”. Assim, mais pessoas iriam acreditar que aquela personagem existia.

Fazer novela significa ficar doente. A temperatura do estúdio é de 10º e as pessoas fumam no camarim.

Já contracenei com gente insuportável. Mas temos que agüentar. Na TV não adianta tentar competir, fazer prevalecer a sua vontade, porque há o corte. Você só vai conseguir criar brigas internas. No teatro ou você agüenta ou pede para sair. Às vezes, é bom agüentar porque é importante passarmos por determinadas experiências, sobrevivermos a elas.

“Tieta” foi, inicialmente, um terror na minha vida. Tinha acabado de sair de um sucesso – Aldeíde Candeias, de “Vale Tudo” – e pensei que estava com a vida ganha. Paulo Ubiratan me chamou para o elenco de “Tieta” e eu achei que faria o papel de uma mocinha deslumbrante, que acabou ficando com a Luiza Thomé. Aí ele me disse que eu iria interpretar a dona Amorzinho. Perguntei quem ela era. Ele me disse: “uma beata”. Paulo avisou que precisava de mim nesse papel. Joana Fomm interpretava Perpétua e eu e Rosane Goffman ficávamos em volta dela sem fazer nada. É uma situação em que você pensa que está tomando um tombo, mas não. Acabamos fazendo um sucesso danado. Paulo Ubiratan precisava de nós porque não sabia se a Joana Fomm, apesar de excelente atriz, seguraria sozinha um papel daquele tamanho.

Na época do governo Collor, muita gente foi mandada embora da Globo. “Pantanal” fez sucesso na Manchete e vários atores voltaram. Depois de “Pedra sobre Pedra”, a Globo me chamou para renovar o contrato e ofereceram o mesmo salário, na base do quer, muito bem, não quer, paciência. Nesse meio tempo, o SBT passou por uma reformulação em sua programação e Nilton Travesso me chamou para trabalhar lá por um salário três vezes maior. Iria participar de uma novela do Flavio de Souza, dirigida pelo Fernando Meirelles. Mas, de repente, o Silvio Santos não quis mais a novela. Resolveram investir em outra novela, “Éramos seis”, em que não havia papel para mim. Aí Boni mandou me chamar e voltamos todos. Silvio Santos conseguiu perder um monte de gente: Irene Ravache, Marcos Caruso, Nuno Leal Maia, Osmar Prado, Denise Fraga, Ana Paula Arósio, que estava começando.

Não gosto muito do ator que é intenso de verdade. Você chega e diz “oi, como vai?” e ele responde “mas eu pensei que naquela cena...”. Tive aula com Sábato Magaldi, que nos ensinava a como não incorporar as personagens. Ele dizia basicamente que nós tínhamos que ser um interruptor: há a hora em que estou interpretando e o momento em que termina. Eu não vou ficar 24 horas convivendo com esse infeliz – se for o caso. O fato de eu não abrir a boca para falar “ah, porque eu pesei que naquela cena...” não significa que não esteja concentrada. Quando entro no set viro outra pessoa. Mas, até entrar, tenho minha casa, minha família, meus amigos, minha vida.

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